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7-junho-2025 Ano 1

TDAH: os impactos de um diagnóstico tardio

Entenda como o diagnóstico tardio do TDAH muda a forma como as pessoas se veem e como são percebidas pela sociedade

Por Julia Galoro, Júlia Barreira, Gustavo Viola Kawamoto, Vitor Vaz Martino, Felipe Unti e Rafael Mariscal

“Não é possível que eu tenha passado a vida toda com algo assim e ninguém tenha notado”, descreveu Nely Barreto, ao ser diagnosticada com TDAH aos 46 anos. Durante todo esse tempo, ela enfrentou silenciosamente as mesmas dificuldades de um dos seus filhos, diagnosticado na infância após apresentar alguns comportamentos no decorrer das aulas escolares. Ela aprendeu a conviver com a falta de atenção e esquecimentos diários. Décadas mais tarde, a mãe de três filhos e médica cirurgiã descobriu a razão para os seus incômodos: o diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, condição psiquiátrica desenvolvida desde o nascimento, onde o paciente lida com dificuldades de atenção, hiperatividade e impulsividade.

Para manter seus pensamentos alinhados e conseguir ter um melhor desempenho nas tarefas diárias, Nely começou a tomar medicamentos, mas ressalta que ainda mantém velhos costumes:  “Sou a pessoa dos folhetinhos, o tempo todo anoto no folhetinho e colo no computador, porque todas as coisas que faço, faço com muito empenho, mas acabo esquecendo das outras”. 

Aquilo que se espera de um adulto em relação à gestão da vida contribui para que pessoas neuroatípicas se sintam inadequadas no dia a dia. Mas em meio a uma busca exacerbada pela superprodutividade, constante da sociedade atual, pouco se faz para que os sintomas sejam levados em conta. “É uma coisa que vivemos de uma forma tão acelerada que achamos normal; o seu normal na verdade, o nosso normal de quem tem TDAH”, conta Nely. Essa percepção de inadequação sem um diagnóstico pode levar a sensações de inferioridade nos mais diferentes âmbitos da vida social, acadêmica e profissional.

A falta de atenção das crianças é vista como um problema, especialmente dentro de um sistema escolar conteudista que exige demais daqueles com maior grau de desatenção e hiperatividade. Essa lacuna as leva a realizarem inúmeras atividades, mesmo que na maioria das vezes de forma incompleta e sem descanso, causando atritos no processo de socialização. Sobre sua infância, Nely relata: “Quando olho pra trás, tenho dó dos meus colegas. Essa era eu. Eu realmente era uma criança que não parava, não dava sossego. E, quando entrei na adolescência, fazia mil coisas. Obriguei os meus pais a me matricularem em duas escolas, escola mesmo; eu ia para uma e depois para outra. Aí obriguei a minha mãe a me colocar em um curso de tricô; nem tinha criança no tricô! Era muita coisa na minha cabeça. Inventava de fazer mil coisas: grupos de estudo, teatro.”

Hoje em dia, o TDAH é muito mais conhecido, tanto pela maior e mais facilitada  disseminação de informações sobre a condição, quanto por uma maior aceitação por parte da sociedade. De acordo com a entrevistada, mesmo se recebesse um laudo na infância, provavelmente pouca diferença teria feito em sua vida, já que a sociedade e a medicina tradicional não estavam prontos para proporcionar o melhor tratamento para suas divergências. 

O diagnóstico e a redescoberta de si

No começo, algumas pessoas ao redor de Laura demoraram para aceitar sua condição. Diziam: “Você é normal demais para ter algo, mas você é esquisita demais para ser normal”. Mas, depois de observarem os benefícios do diagnóstico, eles a acolheram. Laura pôde, então, se encontrar na psicologia. Essa descoberta foi a força-motriz para iniciar o curso. Ela não queria se entender melhor, mas se tornar a melhor profissional e poder lidar com a saúde mental das pessoas no futuro. A jovem relata que teve um professor também neurodivergente e que ajudou com aulas didáticas e divertidas, usando jogos para memorizar as áreas do cérebro.  “Isso me ajudou a perceber que eu poderia adaptar algumas dessas ferramentas para mim mesma. Tenho dificuldade de ser concisa e de definir prioridades, algo muito comum em quem tem TDAH. Mas, ao entender isso, fui me organizando de maneira mais eficaz.”

A criação de uma rede de apoio para ajudar pessoas que estejam passando por momentos difíceis por questões neuroatípicas é o que Laura Bortoli vem fazendo em suas redes sociais. “Receber mensagens de pessoas dizendo que meu conteúdo as ajudou, mesmo sem um diagnóstico de TDAH, é algo emocionante. O impacto que podemos ter na vida dos outros é algo que nunca imaginei que experimentaria. Mesmo sem ganhar muito com isso, a troca genuína e o acolhimento fazem toda a diferença, e isso só me fortalece ainda mais na minha jornada.”

TDAH e as relações sociais

Silvia Salomoni também percebeu sua neurodivergência tardiamente, aos 41 anos: ‘‘Venho de uma família com três filhas. Meu pai provavelmente tinha e faleceu sem saber”. Perceberam através de conversas que a condição era frequente entre os parentes e desde então seu sobrinho sugeriu que ela poderia ter o transtorno também, como ele e sua sobrinha. “Fui ao psiquiatra, mas nunca fui diagnosticada formalmente, possuo o TDAH, mas nunca recebi o laudo, ao contrário da minha filha, que tem laudo e faz acompanhamento com medicações.” 

Estratégias e atalhos

A neurologista Carla Guariglia explica quais são os desafios enfrentados por aqueles que recebem um diagnóstico tardio. Ela afirma que em adultos a não comprovação dos sintomas faz com que a vida seja moldada em vias de superar os obstáculos impostos pelo cérebro. Porém, mesmo com estratégias e atalhos, tarefas relativamente simples, como a leitura e a socialização, exigem um esforço infinitamente maior. “Tem um comprometimento da vida social, acadêmica, familiar. Todos os aspectos.”

Essa exigência de maior concentração e esforço para a realização de tarefas cotidianas leva a pessoa a gastar mais tempo naquilo considerado “simples”, fato que, ao iniciar o tratamento, mesmo que tardio, há uma melhora significativa da auto-estima, memória, hiperatividade, falta de atenção e impulsividade. 

Carla alega que embora a tecnologia dentro da medicina esteja avançando de forma significativa, os profissionais da saúde devem ficar atentos com sinais simples apresentados pelos pacientes que se queixam de quadros de esquecimento e hiperatividade. Segundo a neurologista, o diagnóstico de TDAH não precisa de ferramentas complexas para ser feito. Bastam uma maior educação, conscientização e atenção da equipe médica. Também, se faz necessário olhar o histórico do paciente. “É uma história que se repete na infância desses adultos, criança com dificuldade de aprendizado, a professora reclamava que era bagunceiro, tem um pai com as mesmas dificuldades”, explica. 

A neurologista também afirma que os desafios para a criança e para o adulto com TDAH são um pouco diferentes. “Enquanto na criança ela não para quieta, é hiperativa e tem momentos de desatenção, o adulto sofre, principalmente, com as tarefas diárias: as tarefas demoram o dobro do tempo e gastam muito mais energia.”

A Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) estima que 5,2% dos brasileiros entre 18 e 44 anos convivem com o TDAH. Acima dos 45, a taxa sobe para 6%. Para superar os obstáculos impostos pelo transtorno “deve-se achar formas mais facilitadas de fazer tarefas cotidianas”. Carla Guariglia completa, afirmando que o dinamismo é algo que afeta muito o dia a dia dos sintomáticos. Às vezes, é mais fácil acompanhar uma aula de fotografia do que de história, justamente pelas dinâmicas diferentes presentes nas matérias. 

Sobre as mais diversas reações daqueles que recebem uma análise tardia de sua condição, a neurologista Carla afirma que os pacientes tendem a receber a notícia de forma tranquila. Os assistidos passam a entender por que de suas dificuldades e se aliviam ao saber que suas condições poderão, enfim, se resolver.

Desafios e alívios pós-diagnóstico 

A identificação e comprovação do TDAH na infância ou na idade adulta ajuda na compreensão do autoconhecimento, mas também previne situações complicadas. “Eu tinha comportamentos de risco, abuso de substâncias — o que é bem comum, porque a gente busca mascarar a dor de alguma forma. Muitas vezes, isso vem por meio de substâncias: nicotina, bebida, drogas. E, enfim, o diagnóstico acabou salvando minha vida”, comenta Laura Bortoli. 

Além de fornecer uma resposta médica para os sintomas do TDAH, como os comportamentos impulsivos e de risco, o laudo permite compreender eventos passados na vida que foram interrompidos pela condição. “Eu costumo dizer que minha vida era preto e branco antes do diagnóstico, depois foi como se alguém tivesse pincelado cor nas minhas memórias. Na hora, foi uma mistura de euforia, tristeza e luto. Um luto inconsciente — pela pessoa que eu poderia ter sido, pelas oportunidades perdidas. Mas também alívio. Uma certeza de que eu não estava louca.”

Os transtornos associados ao TDAH muitas vezes permanecem “escondidos” entre outros problemas do cotidiano. Milhões de pacientes ficam à deriva e acabam por relevar a investigação do transtorno na vida adulta, situação que acarreta enormes desafios ao longo da vida. Muitos comportamentos em ambientes sociais e de trabalho passam a ser compreendidos a partir do diagnóstico, e estes sinais variam de pessoa para pessoa. “Me diziam muito que meu ritmo de trabalho era insano e que não era normal. E eu escutava isso há muitos anos, mas, no meu olhar, era apenas um ritmo normal de trabalho”, lembra Nely Barreto. “Mas se há 10 anos eu já tivesse o diagnóstico, talvez parasse para pensar se era só eu nesse ritmo. Não posso obrigar todas as pessoas a fazerem as mesmas loucuras que eu acho normal fazer, sabe?”

Ao aceitar o diagnóstico, a pessoa pode se compreender melhor. “Quando você descobre na fase adulta, você se perdoa por algumas coisas. É muito sofrimento sem o diagnóstico”, afirma Nely.  A descoberta, nesse momento da vida,  traz um certo alívio a quem sempre foi visto como inadequado e inconsistente. Silvia também mencionou seu auto-perdão por muitas coisas enfrentadas durante a sua vida, e relata agradecer por recebê-lo: “Foi gratificante saber o que eu tinha, porque me ajudou a entender melhor toda dinâmica da minha vida”.

Reflexão para o futuro, cuidados com o autodiagnóstico

Mesmo com todos os dados e informações disponíveis sobre o TDAH, é preciso ter cuidado para não cair na banalização do diagnóstico, principalmente tardio. Atualmente, de acordo com a professora especialista em neuropsicologia Marina Von Zuben, casos de autodiagnósticos são cada vez mais comuns, uma vez que a população busca por respostas para situações que fogem do controle emocional. “Em adultos, o que vejo com maior frequência é uma hipótese equivocada de TDAH, formulada pelo próprio paciente, baseada em informações acessíveis nas redes sociais”, alerta.

A professora afirma que a questão do autodiagnóstico vai além da desatenção e hiperatividade notadas pelo paciente. Os sintomáticos, na grande maioria das vezes, estão imersos em outras questões psicossociais que geram estados ansiosos e agitados. Essas condições, não necessariamente relacionadas ao TDAH, são proporcionadas por fatores ambientais, sociais e emocionais que embasam as condições dos pacientes. Marina ainda chama a atenção para tarefas do dia a dia que demandam foco e concentração. Ela explica que são comuns casos em que as pessoas passam a desempenhar menos em tarefas cotidianas, e atrelam a falta de eficiência a uma hipótese equivocada de TDAH, o que pode ser prejudicial à saúde do próprio paciente.

Laura comenta sobre o autodiagnóstico nas redes sociais: “Geralmente quando alguém me fala hoje: ‘Aí, Lau, também tenho TDAH, eu desconfio’, respondo que se trata de uma jornada para encontrar ou descartar esse diagnóstico”. Além disso, relata que não se posiciona com exatidão por ainda não ser uma profissional no assunto: “É preciso um profissional para investigar isso de uma forma mais apurada.”  

A neurologista Carla Guariglia afirma que há um grande risco nessas hipóteses de autodiagnóstico: “O maior perigo é tomar o remédio. Esse remédio é forte, é um receituário super controlado, você não consegue comprar em qualquer lugar. Se a pessoa tomar um remédio psico-estimulante, pode haver o aumento da pressão e batimentos cardíacos. Se a pessoa não tem a doença ela estará tomando um remédio estimulante para o lado errado”.  Ainda assim, mesmo que de forma ilegal, por se tratar de um estimulante, a médica compreende que não é incomum o uso para aqueles que buscam melhorar desempenho em tarefas que necessitam maior atenção. ”Acham que o remédio irá deixá-las mais inteligentes, ajudar a estudar, isso é bem comum”. 

Embora as discussões sobre saúde mental estejam mais presentes no dia-a-dia, e se tornando acessíveis, consultas médicas com especialistas são essenciais para a compreensão de sintomas neuropsiquiátricos.

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